Nesta semana a equipe Resistência em Arquivo, entrou em contato com Nei Lisboa, cantor e compositor gaúcho, para que ele desse seu relato sobre a música “E a revolução?”, que aborda a temática “Ditadura e Direitos Humanos”. Em uma agradável conversa por telefone, Nei falou-nos sobre o contexto de sua criação, sobre a relação que tem com a canção, sobre o que ele canta em suas entrelinhas e sobre as memórias que estão presentes em uma música que faz uma ponte direta com a história do nosso país.
Nei Lisboa é irmão mais jovem – entre sete – de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, primeiro desaparecido político brasileiro cujo corpo pôde ser localizado, no final dos anos 70, depois de uma incansável busca de sua companheira Suzana Lisboa, que segue até hoje na luta por verdade e justiça à frente do movimento dos familiares de mortos e desaparecidos políticos.
“E a revolução” é a oitava faixa do álbum “Cena Beatnik” lançado em 2001. Sua discografia completa junto a uma coluna de textos escrita por Nei e outros materiais estão disponíveis em seu site oficinal, aqui.
Segue abaixo o depoimento de Nei Lisboa, intercalado pela letra de “E a revolução?”:
Clique aqui para ouvir a música!
A letra da música é explicita, ela é direta, tem um discurso direto. Uma “poesia” que mostra a minha relação pessoal com esse assunto, com meu irmão que era guerrilheiro, minhas irmãs que eram de movimento estudantil e dois primos que participaram da luta armada. Eu era o mais novo dos irmãos. A música tem uma certa dose dessa motivação, dessa relação sentimental que tenho com o tema. Mas também quis fazer uma relação aberta com a época, e como isso se aproxima do presente.
Falar do meu amor pelo Eurico, é falar das suas ideologias. Falar da dor maior que é a perda de entes queridos, dessa geração que padeceu na carne a ditadura. Um outro lado dessa geração percebeu essa luta como inglória, mas é questão de momento e ponto de vista, um copo meio vazio, também pode estar meio cheio. Eles lutaram para que hoje o mundo pudesse se encaminhar para um caminho mais justo e igualitário.
68 foi barra
Plena ditadura
Plena resistência
Plena Tropicália
Plena confusão
Foi um rebuliço lá em casa
Manifestos, passeatas
Festivais de minissaias
Meu irmão limpando a arma
Meu irmão,
E a revolução?
A música tem uma longa letra sob uma levada roqueira sessentista que vem narrando a época, que é a minha visão. Em 68 (ano que se passa a música) eu era um guri, tinha nove anos de idade. O quadro não era só de militância política mas de cultura, de rebuliço, Tropicália, gente vendo e fazendo a adolescência acontecer, as minissaias. Mas o que segue este rebuliço foi o AI-5 com torturas, prisões indiscriminadas, violência. A música também fala do contexto do Cone Sul, fala do “Muro de Santiago” onde gente foi encontrada enterrada, cimentados dentro de um muro, inclusive isso aconteceu com a companheira de um amigo meu. Falo também do “Rio da Prata”, da prática de jogar pessoas de helicóptero sob o rio que fica na Argentina. Quando falo que 68 foi barra, foi bala, foi de verdade, duro mesmo. Na Redemocratização essa expressão se tornou uma espécie de chacota, um clichê, uma frase.
68 foi bala
E mais bala foi setenta e um, e dois, e…
Mais bala foi depois
Sempre alguém sumido de casa
Torturado, morto,
Mutilado pelo Estado ao bel-prazer
Boiando no Rio da Prata
Guerrilheiros, jornalistas,
Marinheiros, padres e bebês
Boiando no Rio da Prata
Visto num jazigo vago
Ou num muro de Santiago
Ou jogado numa vala comum
A música tem trechos mais melódicos, mais emotivos, são quase uma mensagem direta ao meu irmão. No final da letra sucintamente eu nomeio certas crônicas do Brasil que mesmo hoje em 2014 continuam, de uma forma ou de outra: “Luxúria, Mentira, Autoridade sem moral”
Mais duro é perceber
Se eu fosse te falar
Do Brasil de agora
Que seria tão igual
Miséria
Doença
Polícia brutal
Luxúria
Mentira
Autoridade sem moral
Viu? Hum, hum
68 foi barra
Como é 2001… e 2014!
Clique aqui para ver a letra na íntegra!
Saiba Mais:
Nos anos 67 e 68, Ico (como o Eurico era conhecido) era estudante e líder da União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas. Foi processado pela Lei de Segurança Nacional, tendo então que adotar uma identidade diferente, não mais podendo viver seus próprios anseios e vontades, passou a viver na clandestinidade. Esgotadas as chances da luta democrática, ingressou na ALN – Ação Libertadora Nacional, organização que era liderada por Carlos Marighella, desaparecendo em setembro de 1972. Suzana (companheira e esposa) nunca parou de buscá-lo desde então. Seus restos mortais foram encontrados no Cemitério de Perus, enterrado com nome falso. Foi o primeiro “desaparecido” a ser encontrado, graças ao esforço de Suzana e isto fortaleceu a luta e a busca das famílias pelos corpos de seus entes queridos. Luiz Eurico é hoje nome de rua em várias localidades do Brasil, é também referência de resistência contra a ditadura.
Em Dezembro de 2013 presenciamos um ato organizado por diferentes movimentos sociais para realizar o tombamento popular de um antigo centro de tortura usado pelos aparelhos repressivos. Esse antigo prédio do “Dopinha” – nome dado em alusão ao Departamento de Ordem Social e Política (DOPS) – hoje um velho casarão na rua Santo Antônio, nª 600, no bairro Bom Fim em Porto Alegre, foi usado na década de 1960-70 como centro de detenção e tortura clandestino contra perseguidos políticos. Assim que for implantado, o Centro de Memória se chamará Ico Lisboa, recebendo o nome de um opositor do regime militar, e exercerá uma função social voltada à defesa dos direitos humanos e ao resgate da memória da resistência à ditadura.
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