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A importância de conservação e difusão de fontes arquivísticas para o resgate da história e da memória.

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Os arquivos públicos, em sua maioria, foram criados com a função de salvaguardar a documentação produzida para uma possível reutilização, em especial atendendo à Administração Pública. Esta perspectiva mudou nas últimas décadas quando se passou a valorizar mais a importância das fontes arquivísticas no subsídio à produção de pesquisas científicas e construção de conhecimento histórico.

Reconhecer a importância da preservação das fontes salvaguardadas nos arquivos públicos sejam eles, municipais, estaduais ou federais, é reconhecer que estas instituições são responsáveis por preservar uma documentação que auxiliará também, na construção da cidadania, contribuindo assim, para o resgate da memória brasileira.

A preservação de fontes arquivísticas perpassa as técnicas de conservação de documentos como a microfilmagem, digitalização, climatização, higienização, desinfestação e o acondicionamento correto do acervo, e a forma ou a centralidade dada a ela está diretamente ligada ao olhar dos responsáveis pela gestão documental, visto que, considerando o contexto de falta de recursos humanos e financeiros dos arquivos, infelizmente em alguns momentos é necessário escolher o que preservar primeiro.

Quando tratamos de arquivos públicos, em geral seus acervos são documentos oficiais produzidos pelo Estado, o que precisa ser considerado pelos pesquisadores, que devem olhar atentamente e avaliar os conteúdos questionando as aparentes “verdades” ali contidas. Se considerarmos as fontes que tratam do período repressivo da ditadura civil militar brasileira, esse cuidado deve ser redobrado. Consideramos ideal que sempre haja o cruzamento de fontes, como a utilização de depoimentos ou testemunhos prestados pelas vítimas deste regime, por exemplo, de forma a contrapor versões e qualificar as análises.

Trabalhar com fontes arquivísticas que retomam a história da ditadura civil militar brasileira é uma tarefa que exige sensibilidade, já que estas trazem informações delicadas sobre aqueles aos quais os documentos versam. Devemos problematizar a veracidade das informações contidas nestes documentos visto que foram muitas vezes extraídas a partir de tortura e de tratamento desumano empreendido às vítimas, e registradas por agentes públicos ligados à ditadura, impondo sobre estes documentos as perspectivas e posições do regime.

É importante considerar também que desde a produção de tais fontes até o presente momento notamos uma alteração em sua função: foram criadas, por exemplo, com o propósito de registrar as prisões daqueles que o Estado considerou ameaça para a Segurança Nacional. Hoje esta documentação cumpre um papel oposto ao de sua criação, tornando-se dado comprobatório das violações aos direitos humanos cometidos por agentes públicos a mando do Estado. Segundo Enrique Padrós, esta mesma documentação pode ser utilizada para outros fins e a abertura destes arquivos está conectada a quatro dimensões do exercício da cidadania: histórica, política, pedagógica e administrativa.

“Em termos históricos, implica na possibilidade de desenvolver a pesquisa sobre os acontecimentos na produção de conhecimento histórico e na sua socialização. Em termos políticos, possibilita que a sociedade, de posse do conhecimento, se posicione sobre tais acontecimentos e, se assim entender, responsabilize os culpados e apele à justiça. Em termos pedagógicos, o conhecimento deste passado pode gerar “ações” (pedagógicas) que reforcem o caráter democrático e a necessidade de não esquecer. Por último, em termos administrativos, as pessoas que se sentem prejudicadas individualmente pelas ditaduras podem exigir, junto à justiça, direitos de reparação, restituição de empregos ou bens, fim de punições e expurgos, etc., o que significa a possibilidade de reconstruir memórias “lastimadas” pela tortura, pela perseguição política e pelo exílio.” (PADRÓS, 2009, p. 42)

Os argumentos para a preservação de documentos arquivísticos relacionados ao regime de exceção instaurado pelo Golpe de 1964 são muitos. Além de ressaltar sua importância para a preservação dos direitos civis, a documentação que trata da temática da ditadura brasileira, pode ser utilizada para garantir às vítimas os direitos de anistia, indenização e pensão. Nesta mesma perspectiva, a preservação e a divulgação dessa documentação possibilita conhecer a realidade da repressão brasileira durante 1964 a 1985, bem como a compreensão do nosso passado recente.

O acervo Comissão Especial de Indenização, salvaguardado no Arquivo Público e composto por processos de indenização a ex-presos políticos no contexto da ditadura, é um acervo que responde às características aqui problematizadas. Ele é patrimônio de todos, pode contribuir para a construção de conhecimento e, consequentemente, para o exercício da democracia. A partir desta documentação é possível perceber, por exemplo, uma representação considerável de agricultores do norte e noroeste do Rio Grande do Sul, simpatizantes de Brizola e do Grupo dos Onze, que foram vítimas da ditadura. Outro ponto a ser destacado é a participação das mulheres nos grupos de resistência, armada ou não. Além de contribuir para a identificação de agentes e instituições públicas que serviram ao regime ditatorial, os processos administrativos que compões este acervo são indispensáveis para a recuperação de fatos históricos relacionados ás graves violações dos direitos humanos que foram cometidas no Rio Grande do Sul.

PADRÓS, Enrique Serra. História do tempo presente, ditaduras de segurança nacional e arquivos repressivos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2009.

Há 50 anos do golpe: tempo de reflexões, produção intelectual e debates políticos.

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Tomando emprestada a categoria de Eric Hobsbawm, ainda que esta tenha sido forjada para falar do século XX, podemos afirmar que o blog Resistência em Arquivo nasceu de “tempos interessantes”: ele foi fruto do contexto que marcou os 50 anos do golpe civil militar de 1964 no Brasil, nasceu das inquietações que acompanharam historiadores, arquivistas, cientistas sociais, políticos, estudantes e diversos setores da sociedade que buscaram problematizar o evento histórico em seu tempo, assim como as marcas por ele deixadas, e o necessário aprofundamento da investigação científica em torno da questão.

Nosso blog, um dos eixos do Projeto Resistência em Arquivo, surgiu para difundir o tema e contribuir com a discussão, ao lado da construção do catálogo seletivo e da oficina que dão acesso e difundem o acervo da Comissão Especial de Indenização aos ex-presos político no Rio Grande do Sul, salvaguardado pelo APERS. O blog é contemporâneo aos trabalhos das Comissões Estadual e Nacional da Verdade, que já foram tema de postagens aqui, assim como de múltiplos eventos organizados ao longo desse ano, com diversos enfoques. Universidades, instituições de memória, escolas, comissões estatais, comitês da sociedade civil, todos envolvidos em promover reflexões sobre o golpe de 1964 e seus desdobramentos, sobre a atuação dos militares e a participação civil, sobre a Lei de Anistia, sua atualidade, interpretações e os entraves que causa à justiça, sobre mortos, desaparecidos e a luta de seus familiares por memória, verdade e justiça, sobre o ensino a cerca desse processo, sobre o uso de testemunhos, os impactos psicológicos do golpe, da tortura e da política do medo instaurada pelo regime, que atingem tanto indivíduos quanto a sociedade como um todo, sobre a resistência à ditadura e a luta por democracia e direitos humanos, e sobre a história dos 21 anos de ditadura no Brasil. Ao longo do Projeto tentamos refletir tudo isso aqui, ainda que de forma modesta.

E por que retomar isso agora? Bem, 2014 aproxima-se do fim marcado por embates políticos, numa situação polarizada em que conceitos como ditadura e democracia estão na ordem do dia. Essa polarização se expressa nas ruas com “cartazes” que pedem, por um lado, punição aos torturadores da ditadura, justiça para o ontem e o hoje, mais direitos e aprofundamento dos mecanismos de participação popular; por outro, a manutenção do status quo e de uma organização social embasada em privilégios e na meritocracia, que se exacerba com setores minoritários que chegam a pedir por “intervenção militar”.

Podemos afirmar que um dos fatores que contribuiu para que tais embates tenham se evidenciado foi o enfrentamento feito em prol de memória e verdade no último período. Acreditamos, entretanto, que em um contexto como esse se torna mais e mais necessário o estudo e o amplo acesso a informações sobre os 21 anos de ditadura, para que a sociedade possa negar o caminho autoritário e reacionário como uma via para dar respostas à pobreza, à precariedade de alguns serviços públicos ou à corrupção. É preciso que debates como os que foram travados ao longo de todo o ano de 2014, em função dos 50 anos do golpe, prossigam e alcancem setores mais amplos, contribuindo para desmontar argumentos como “no tempo da ditadura não havia roubalheira”, ou “naquela época não havia insegurança nas ruas”. Será que não havia corrupção, ou o sistema autoritário e censor garantia que os casos não fossem descobertos? Até que ponto a sensação de segurança era real, ou estava diretamente relacionada a ausência de liberdade e ao medo velado? Com que preço nós ou a geração de nossos pais pagou por essa “segurança”?

Nesse sentido, divulgamos o dossiê 50 anos do golpe de 1964, elaborado pelo historiador Demian Bezerra de Melo e disponibilizado através do blog marxismo21, em uma tentativa de mostrar a diversidade de produções nessa área e de incentivar que as reflexões e os debates sigam para muito além desse ano que marcou o 50º aniversário do golpe, ou em que as Comissões da Verdade entregarão seus relatórios finais. A compilação expressa no dossiê traz o link para uma infinidade de “trabalhos acadêmicos, artigos, uma lista de filmes e vídeos, portais, dicas de eventos acadêmicos, exposições e outros materiais importantes para um aprofundamento da reflexão crítica sobre os 50 anos do golpe de 1964.” Abrindo espaço para polêmicas historiográficas e registrando contribuições clássicas e recentes, certamente é um excelente “pontapé inicial” para todas e todos que desejaram entrar em contato com a efusiva produção do último período acerca do golpe e da ditadura de 1964. Boa leitura!

Justiça de Transição e Direito à Memória – Identificação e Ressignificação dos Espaços de Tortura e Resistência

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Com essa postagem, encerramos uma série de conteúdos construídos pela equipe do Blog acerca de assuntos que envolvem a nossa Tardia e Incompleta Justiça de Transição. Nesse post, compartilharemos reflexões acerca de um dos pontos específicos que caracterizam uma Justiça de Transição. Vamos falar a respeito da identificação e da ressignificação de espaços ocupados pela repressão e pela resistência durante o período da Ditadura Civil-militar. Para isso, vamos tomar como ponto de partida um texto escrito por Christine Rondon Teixeira, coordenadora do Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça.

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Segundo a autora, Justiça de Transição, na compreensão da ONU, seria “um conjunto de abordagens, mecanismos e estratégias, jurídicas e não jurídicas, destinadas a enfrentar o legado de violência dos regimes autoritários”. Guiada pelas diretrizes direito à memória, à verdade e à justiça, estruturar-se-ia em quatro pilares: a responsabilização dos agentes públicos que cometeram crimes de lesa-humanidade; a reforma das instituições que colaboraram com as violações de direitos no regime e a garantia do direito à memória e à verdade.

Nesse caso, a identificação e a publicização de espaços onde houve tortura e resistência responderiam estrategicamente ao direito à memória. Christine adverte que o “exercício da memória auxilia na luta pela superação das violências que atravessaram o marco democrático” na transição para a democracia e por isso mesmo também é tratado como objeto de disputa social por diferentes setores da sociedade. Nesse caminho, experiências levadas a cabo, demonstrariam que o georreferenciamento seria capaz de “despertar a curiosidade e a consciência das pessoas para a concretude do nosso passado autoritário e de seus efeitos presentes” e que a construção de memoriais em locais nos quais ocorreram violações dos Direitos Humanos auxiliariam na construção de uma memória coletiva acerca do período bem como de uma cultura política.

Cabe lembrar que também o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) definiu como objetivo, para aquilo que confere ao direito à memória, a identificação e a publicização das estruturas utilizadas para a prática de violação de Direitos Humanos, reconhecendo, com isso, uma intensa relação entre memória e representações espaciais. Segundo Rondon, “nós, brasileiros não temos ideia do exato funcionamento ou mesmo da simples localização dos aparelhos repressores do Estado” e dessa forma, a identificação dos espaços físicos possui importante papel no resgate de acontecimentos vividos naquele contexto ditatorial.

DopinhaE apesar de ser responsabilidade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da presidência da República, da Casa Civil da presidência da República, do Ministério da Justiça e da Secretaria de relações institucionais da República, em Porto Alegre, a identificação de um dos espaços nos quais ocorreu graves violações dos Diritos Humanos no período da ditadura, foi identificado, por meio da organização de diversos atos públicos, pelo Comitê Carlos de Rê. Estamos nos referindo a antiga sede do Dopinha, localizado na Rua Santo Antônio no Bairro Bonfim, onde funcionou uma estrutura clandestina do DOPS.

Segundo Christine, local de memória por excelência, assim como tantos outros espalhados pelo Brasil, esse foi um espaço comprovadamente de tortura e morte. Conhecido como Casarão da Santo Antônio e como local de tortura e da morte do Sargento Raimundo Soares (o “Caso das Mãos Amarradas”), hoje faz parte de um projeto, em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre e com o Estado do Rio Grande do Sul, de construção do Memorial Ico Lisboa.Dopinha 3

A ideia é construção de um centro de memória que ressignifique o espaço, que auxilie na construção da memória e da história desse período e que preste, ao mesmo tempo, homenagem a Luiz Eurico Tejera Lisboa, primeiro desaparecido político cujo corpo foi encontrado.

Dopinha 2Coube à equipe do Blog, com esse exemplo, levantar a pauta da identificação e da ressignificação desses espaços em nosso estado. Indicamos, por fim, a leitura completa do artigo de Christine Rondon Teixeira, que abordou além dos aspectos resenhados acima, tantos outros elementos que nos auxiliam a entender “potencial benefício da utilização destes espaços para a conscientização da sociedade” na permanente construção da democracia e no encerramento, por completo, daquele período ditatorial.

Em tempo, ainda indicamos a leitura da entrevista que a autora concedeu ao Portal de Notícias Sul 21 – Memorial Ico Lisbôa ajudará a eliminar restolho da ditadura, diz Christine Rondon.

Novos Partidos Políticos

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O processo de redemocratização ocorreu pela pressão constante exercida por diversos setores da sociedade, de diversas formas distintas. Vários desses grupos utilizaram a estrutura do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que era o partido político permitido durante a vigência do bipartidarismo. Apesar dos limites impostos pela Ditadura, através desse partido havia a possibilidade de certa ação e organização da oposição. É possível compreender que a presença parlamentar do MDB serviu de contraponto fundamental aos setores que apoiavam a Ditadura e a própria ação desta. Maria Moreira Alves no seu clássico livro Estado e Oposição no Brasil (1964-1985), afirma que todo a Ditadura se configurou pelo constante conflito entre o projeto investido após o golpe e setores que resistiam a ele, mas destaca a importância da atuação parlamentar, através do MDB. Independente dessa análise possível, o bipartidarismo é extinto em 1979, passando a vigorar o pluripartidarismo. Alguns autores consideram que essa foi uma medida feita pelo regime para poder dividir a oposição, afim de estender um pouco mais o domínio dos setores ligados à Ditadura nas eleições estaduais que iriam ocorrer. A Ditadura cumpriu sua promessa de realizar uma “abertura lenta, gradual e segura”, não dando possibilidades para os novos partidos assumirem prontamente o protagonismo das decisões políticas nacionais.

A sociedade progressivamente passa a se reorganizar em volta dos partidos políticos, que representavam distintos interesses e projetos de país (como o fazem os partidos políticos). Do MDB partem muitos dos integrantes que irão formar o PMDB, PDT, PTB e PT, no período final de 1979 e durante 1980. Também neste ano é fundado o PDS, partido herdeiro da ARENA, defensora dos interesses do regime militar. Obviamente a atuação dos partidos seguia de forma mais ou menos pragmáticas os interesses de seus integrantes, que muitas vezes não são expostos publicamente. Além de que a atuação pode ser distinta da sua prática. Porém, de qualquer forma, buscam apresentar um discurso à sociedade afim de legitimar sua atuação. A seguir, buscaremos apresentar dois trechos retirados do Jornal Folha de São Paulo, algumas linhas sobre a compreensão dos novos partidos sobre sua atuação dentro de uma nova conjuntura. Nos limitaremos a expor a exposição sobre o PT, por ser o partido a trazer mais novidades programáticas e sociais e, em seguida, um trecho sobre o PDS, que se manteve como baluarte do regime. Também compreendemos que foram os dois partidos a proporcionarem maior polarização ideológica, o que nos ajuda a perceber qual era o cenário em que ocorriam as discussões no período.

PT, por José Álvaro Moisés:

“Pela primeira vez, depois de muito tempo, os trabalhadores e outros setores populares colocam diante da tarefa de buscar definir e tratar de construir uma versão de democracia que atenda aos seus interesses. É uma tarefa imensa, nova e cheia de dificuldades. passa por muitas vicissitudes e a sua grande atualidade está em que não se espera que ela seja definida pelos outros, nem que ela tenha data a aguardar. Ela começa já, aqui e agora, a partir das lutas de todo dia. Por isso, ela não depende só dos grandes momentos, nem exclusivamente das disputas eleitorais. é uma luta permanente.”

“É inegável que o novo MDB – se realmente lograr se constituir – poderá ter uma função importante na construção da democracia no País (como, aliás, o indicam as suas lutas de todos esses anos). Mas por que insistir em jogar um papel que o tempo, e a própria evolução das coisas, mostrou que ele não pode desempenhar? Por que não admitir, realisticamente, que a frente das oposições (ou “aliança” social, se se quiser) poderá se reconstituir, em condições bastante mais apropriadas, desde que os seus integrantes assumam, claramente, a sua identidade própria? Ou seja, desde que eles se constituam, livremente, em partidos ou em propostas políticas? Nesse quadro, o PMDB tem o seu papel. Mas ele não substitui, por nada, a função que está destinada ao PT. Pois este nasceu para trazer para a política aqueles que sempre estiveram fora dela, mesmo depois que o antigo MDB se tornou o depositário da preferência eleitoral da massas populares.”

PDS, por José Sarney:

“Ao partido do governo cabe formular um plano de ação partidária profundamente comprometido com o real, enquanto à oposição pode se permitir formulações pouco reais, embora muito políticas. Foi constante preocupação dos que elaboraram a proposta do manifesto do Partido Democrático Social o viver real, o nosso momento histórico, as mais legítimas aspirações do povo brasileiro. Propomos corretivos estratégicos e táticos para atender ao desejo de reforma e transformação de nossa sociedade, o desenvolvimento sem desfigurar o perfil histórico da Nação, garantindo as liberdades civis, os direitos humanos e a harmonia dos diversos segmentos da população.”

“Um partido necessita de doutrina, organização e liderança. A proposta do Partido Democrático Social importa num compromisso com a democracia social. Democrático porque seu chão é a democracia, por ser livre, aberto ao exercício perene do debate interno e, liberto de mandos. Social por completar o democrático, ao defender não somente as liberdades subjetivas, mas os direitos e garantias sociais contra a fome, o medo, as doenças, o desemprego, a miséria, a perseguição religiosa e a violência da privacidade dos cidadãos.”

“Nossa proposta partidária é a de não submeter-se a pressões ideológicas de direita e de esquerda, fugindo ao conservadorismo estático e ao revolucionarismo autoritário e aético. Nenhuma concessão à acomodação e ao imobilismo, sem, contudo, pregar o desmoronamento das estruturas nem desmerecer a tradição dos grandes homens que fizeram a Nação. Reformista, sim, por vivermos numa sociedade em transformação e reconheceremos a necessidade de novas conquistas sociais capazes de estabelecer uma sociedade mais justa e mais humana.”

“O partido Democrático Social lutará, portanto, pelo homem, em sua dimensão humana e social. A democracia não opera com verdades absolutas ou formas acabadas. Muito foi feito e muito ainda resta a fazer. O PDS é um chamamento à participação dos brasileiros na atividade partidária, dentro de uma agremiação moderna que pensa no futuro. Agora, partiremos para a definição de sua estrutura, uma organização aberta e democrática. A complexidade do País exige Instituições políticas vigorosas capazes de operar esta grande Nação democrática. Esta a nossa proposta: reforma e transformação. Progresso dentro da liberdade, através do diálogo e da paz social.”

Retratos da ausência

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O trabalho de Gustavo Germano busca recriar uma cena vivenciada a décadas, que fora eternizada pelas lentes de máquinas fotográficas. Na comparação das imagens se percebem ausências de alguns protagonistas. Além disso, pode-se perceber que as pessoas presentes mudaram muito, não apenas pela passagem natural dos anos, mas pela necessidade de conviver diariamente com uma insolúvel dor. São marcas causadas pela saudade do companheiro ou da companheira que não esta presente; por ter a certeza de nunca mais o ver; por imaginar diariamente quais foram os lugares e a forma de seus últimos momentos, mas ter que conviver com a impossibilidade de ter certezas, portanto ter que imaginar diversas hipóteses; de ter parte de seus sonhos e expectativas arrancados brutalmente por um regime que se assentava sobre a violência. Não acreditamos que pode haver qualquer forma de beleza assentadas sobre tais brutalidades, quer na forma de imagens ou texto, contudo, esse tipo de produção nos toca para a humanidade de tudo que estamos tratando. Nos faz sentir e pensar sobre as repercussões do terror de Estado, de suas torturas, prisões, desaparecimentos, mortes e o enorme silêncio e desinformação que paira acima de tudo isso. 

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Resposta das Forças Armadas à Comissão Nacional da Verdade

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     As Forças Armadas deixaram de aproveitar mais uma oportunidade de enfrentar seu passado e contribuir com a vida democrática. Isso por terem novamente negado a verdade frente pedido de esclarecimento feito pela Comissão Nacional da Verdade, ao que responderem que não houve prática de tortura em espaços controlados pelas três Armas. Continuam a negar a violência, a tortura e as mortes cometidas pelo aparato de Estado contra seus cidadãos, em prol de um determinado ideal de sociedade. Ideal que foi construído na articulação entre setores militares e civis, justamente aqueles setores que ocuparam os espaços de poder durante os anos da ditadura. Para ser justo, não são todos militares que negam que praticaram estes atos, mas afirmam que foram realizados por um bom motivo. Esses afirmam que estavam em uma guerra (de um só exército, diga-se de passagem) e que estavam do lado da “democracia”. Deveriam justificar isso a si e aqueles que os rodeavam enquanto massacravam presos políticos, das mais variadas organizações de esquerda, desde os primeiros anos da ditadura. De qualquer forma, esperávamos que a instituição militar, submetida constitucionalmente ao controle civil (de onde deveria emanar todo o poder do Estado), oficialmente expusesse o que ocorreu e ajudasse a tornar mais claros casos ainda não resolvidos. Contudo, mantém-se com cínica negação de suas práticas, já comprovadas tanto quanto possível (de acordo com a fracionada documentação acessível) e por diversas organizações, que lutam a anos pela Memória, Verdade e Justiça.
     O projeto Brasil Nunca Mais, desenvolvido em conjunto por advogados e grupos religiosos (apoiados pelo Conselho Mundial de Igrejas), buscou, a partir de 1979, produzir cópias dos processos existentes no Superior Tribunal Militar, para que não se perdessem e pudessem ser base para a produção de uma obra de denúncia. Os advogados utilizaram do direito de retirar os processos por vinte e quatro horas para vistas, para produzir cópias, que, em seguida, eram enviadas para São Paulo. Conforme o site Brasil Nunca Mais digit@l: “Aproximadamente após seis anos de trabalho em sigilo, a tarefa foi finalizada. A reprodução dos 710 processos judiciais consultados totalizou cerca de 900 mil cópias em papel e 543 rolos de microfilmes. Ademais, foi produzido um documento-mãe, denominado “Projeto A”, com a análise e a catalogação das informações constantes dos autos dos processos judiciais em 6.891 páginas divididas em 12 volumes.” O Projeto A pode ser encontrado digitalizado em sua totalidade no site . No Tomo V – Volume 1: A Tortura, podemos encontrar uma lista de espaços utilizados para a tortura no Rio Grande do Sul, conforme as informações contidas nos processos, principalmente nos depoimentos dos presos políticos. Ainda que não majoritários, encontramos indícios de terem sido utilizados espaços administrados pelas Forças Armadas para esses fins.
        A Comissão Nacional da Verdade foi uma das últimas organizações a tencionar essa questão, ao encaminhar um pedido de esclarecimento às três Armas, quanto a utilização de espaços físicos por elas geridos para a prática de tortura. Solicitou a abertura de sindicâncias internas para pesquisar e apresentar respostas. Após semanas afirmaram que não houve qualquer tipo de irregularidade e de alteração das funções dos espaços por elas administrados. Frente a essa resposta torpe, a CNV encaminhou um pedido de esclarecimentos ao Ministério da Defesa, responsável civil pelas irresponsáveis Forças Armadas, ao menos quando encaram a história do período. Assim, a CNV pede que sejam dadas algumas explicações coerentes com o que já se sabe, portanto, que não neguem os depoimentos de milhares de pessoas que sofreram direta e indiretamente com o terror do Estado, que sabem, que foram obrigadas a (sobre)viver nos porões da ditadura. Claro, não nos devemos esquecer dos depoimentos de alguns ex-torturadores que relataram suas práticas, quando na ativa (podemos citar o caso recente do depoimento prestado por Paulo Malhães à CNV, em 27 de março https://www.youtube.com/watch?v=e2SnsSYG7O0).
     Somente por essa breve exposição podemos perceber quão grave é a situação. Além de tantas heranças impostas, aparentemente se mantém Forças Armadas que não servem os cidadãos, o que deveria dar sentido às suas ações. É fundamental que nossa sociedade, como um todo, enfrente o período da ditadura. Sendo coerentes não podemos atribuir todos os males de nossa sociedade à ditadura, mas não podemos deixar de compreender as transformações do período, principalmente observando a quem serviam. No trabalho educacional percebemos que os alunos carregam grande desconhecimento sobre o passado nacional, principalmente do que poderia ser compreendido como História do tempo presente. Isso resulta que não tenham as ferramentas necessárias para se compreenderem como sujeitos nesse processo, assim como para compreender as influências que tocam suas vidas. Democracia não é apenas uma forma de governo, mas é um prática constante, que deveria atingir muitos âmbitos de nossas vidas. Acreditamos que essa prática se constrói com educação, principalmente com educação crítica, que não fuja de questões essenciais, ainda que delicadas. Criticamos a postura anti-democrática e profundamente conservadora dos maiores representantes das Forças Armadas, mas não podemos deixar de criticar os governos eleitos após a redemocratização, por não terem enfrentado com a devida seriedade as questões referentes à ditadura. Não nos parece que qualquer problema é resolvido de fato com a negação do problema, com sua superação mais virtual que real.

Relato de sobrevivência: Nilce Azevedo Cardoso

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Nilce Azevedo Cardoso

Nilce Azevedo Cardoso

Trazemos esta semana depoimentos de Nilce Azevedo Cardoso contando trazendo relatos de sua vida, sua juventude, sua história de militância política, uma história de perseguição do regime militar, de dor, de tortura, mas de também de resistência,superação e vitória!

O depoimento de Nilce seja de forma escrita quanto seu depoimento gravado em vídeo são impactantes. Os relatos nos trazem um pouco da ideia do que foi a perseguição a ditadura, a resistência e da repressão.

No vídeo abaixo Nilce dá seu depoimento no primeiro encontro da comissão estadual da verdade do Rio Grande do Sul, em uma audiência pública que aconteceu dia 08 de março de 2013.

Sim, meu pai, também posso dizer “Nossa luta não foi em vão”

Nilce Azevedo Cardoso

Meu pai me perguntou se tinha valido a pena tanta dor. Na época, eu só respondi que sabia com o que eu estava comprometida e quais seriam as conseqüências. Agora, propondo-me a escrever sobre as torturas que me foram impostas, essa pergunta aparece novamente. Passados trinta anos, o sentimento que me assalta é de esperança e, ao mesmo tempo, de horror.

Esperança de que o que fizemos continue a dar frutos, porque, apesar de tudo o que nos aconteceu, fizemos a história avançar, porém nenhum torturador e, principalmente, seus mandantes foram julgados ou condenados. Acreditávamos e continuo acreditando na necessidade de construirmos um mundo sem exploradores e explorados, onde o ser humano pudesse e possa viver como ser humano, numa sociedade solidária e cidadã, uma sociedade socialista.

Outro sentimento que me assalta é de horror. Porque temos que falar disso que nos machucou tanto? Lembro-me de Gorky quando foi perguntado para falar dos horrores que passou na infância. Ele teria dito algo como enquanto toda humanidade não souber do que se passa, a história se repete. Assim, proponho-me a falar um pouco do que se passou.

Nascida no interior de São Paulo, na cidade de Orlândia, morei durante minha adolescência em Ribeirão Preto. Fui para a capital fazer faculdade de Física . Entrei na Universidade de São Paulo em 1964, em pleno golpe. Desde meu ingresso, pude saber que minha vida jamais seria a mesma. Comprometida com o Movimento de Educação de Base, admiradora de Paulo Freire, entrei na JUC (Juventude Universitária Católica),tendo feito parte da Direção Nacional. Participei dos movimentos políticos durante a faculdade, tendo conhecido a violência do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) nos embates na Maria Antônia- a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo ficava na rua Maria Antônia, em frente a Faculdade Makenzie. Também participei da resistência que fizemos em defesa do CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), onde morei durante meu curso na faculdade.

Esses foram anos de uma vivência política muito rica e educativa. Terminei a faculdade, tendo entrado, em 1967, para a então AP (Ação Popular), depois Ação Popular Marxista Leninista porque queria seguir em frente com minhas convicções políticas. Comprometia-me cada vez mais com a melhoria de vida do povo brasileiro e assim identificava-me ideologicamente com as classes populares.

O ano de 1968 foi um marco para mim como o foi para todos aqueles que militavam nessa época. Decidi-me conhecer de perto a vida e a luta da classe operária. Casei-me e fomos morar no ABC. Fui trabalhar, como operária, na Rhódia, fábrica de linhas em Santo André.

Seguindo o caminho de uma vida clandestina vim para Porto Alegre, em 1969, tendo ido trabalhar na fábrica Renner também como operária. Por motivo de segurança resolvi retomar o magistério como nos anos de faculdade, quando lecionava Física. Aqui em Porto Alegre, eu lecionava matemática quando caí presa.

Em 11 de abril de 1972, fui seqüestrada numa parada de ônibus, jogada no banco traseiro de um carro e, aos bofetões, levaram-me para a escuridão das dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) onde fui imediatamente encapuzada. Por ter participado da seção de Serviços (mensageira entre os comandos nacional e regionais) e por ter sido membro do Comando Regional da AP, em Porto Alegre, eu já sabia o que me esperava. Entretanto, nenhum conhecimento teórico pôde antecipar o horror das torturas. Ainda encapuzada conduziram-me para uma sala, onde as primeiras palavras que ouvi foram “Tira a roupa.”.

O delegado Pedro Seelig, chamado por Cacique, junto com Nilo Hervelha e outros, de que ainda não me lembro os nomes, arrancaram minhas roupas, com palavras de depreciação na tentativa clara de baixar minha auto-estima. Perguntaram meu nome e eu disse Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todo os lados. Insistiam na pergunta, com socos na boca do estômago e no tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram os fios e vieram os choques . Fiquei muda daí para frente.

Quando paravam os choques, vinham as perguntas. Mas, meu silêncio continuava. Eu só pensava que ali estava terminando minha vida, porque achava que estava morrendo. Com o tórax soqueado, sentindo o sangue na boca, percebi que se movimentavam. Fui colocada no pau de arara.

Conheci o terror da dor física violenta, quase insuportável, e a dor de alma diante daquele horror que eu jamais imaginara que pudesse existir, embora já tivesse lido sobre relatos de torturas. Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criavam-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que não conseguia gritar, o que veio a me causar muitos danos psíquicos posteriores. Pendurada de cabeça para baixo no pau de arara, a lucidez continuava total. Lembrava-me a todo momento que estava ali em conseqüência de meu compromisso político e, naquele momento, para mim era o fim. Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiravam dali e me entregavam para policias femininas que me obrigavam a me mexer. Eu perdi os movimentos das pernas e dos braços e não conseguia articulá-los. Então elas me arrastavam. Quando achavam que já estava melhor, eles me penduravam novamente. O sangue jorrava e eles enfiavam a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molhavam meu corpo e me arrebentavam com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não tivessem cometendo aquelas atrocidades.

Para poder escrever o que estou escrevendo tive que ser atendida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por um psiquiatra logo na saída da prisão. Fui atendida no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Seguiram-se muitos anos de psicoterapia, principalmente um trabalho de psicopedagogia com a psicopedagoga Alicia Fernández onde iniciei o processo de recuperação da memória. Há quase dez anos entrei em análise, com a psicanalista Miriam Möller, não só para sair de uma amnésia, como para recuperar minha identidade e poder conviver com esse horror todo.

Lembro-me que os gritos dos torturadores foram se tornando cada vez mais fracos e quando me dei conta, estavam me fazendo massagem no coração, possivelmente após uma parada cardíaca. Ali acabaram de quebrar o seio, osso do tórax, como mais tarde vim a saber, após ser tirada radiografia no hospital. Passaram uma luz intensa nos meus olhos, usaram amoníaco para reanimar-me e eu ouvi “Não reage”. Eu já tinha sido examinada pelo médico que indicava quando podiam continuar a tortura. Mas, dessa vez, não foi possível porque entrei em coma.

Fui levada para o Hospital Militar e fiquei em coma oito dias. Depois disso, fui levada para o DOPS novamente. Muito mais magra e uma chaga só, fui colocada no meio de uma roda de companheiros. Senti uma dor violenta. Como estavam ali ? E tantos. Os torturadores me mostravam cada um deles e me perguntavam se eu os conhecia. Eu nada respondia. Passei por todos e não tendo dito que os reconhecia voltei para a sala de torturas. A pancadaria recomeçou, Depois de um tempo percebi que Hervelha não me perguntava nada. Pedi para falar com um de meus companheiros e soube que muita coisa tinha sido dita. Ameaçaram levar-me para o Guaíba (eu conhecia o caso das mãos amarradas…) e, analisando a melhor saída, naquele eu disse “Meu nome é Regina”. E fiz um surto . Completamente descontrolada chorei muitas horas compulsivamente, sentindo-me morta. Eu tinha a convicção de morrer e não dizer nada. A tortura não atinge somente o corpo, mas também a alma e a mente humana. Deram-me algo de remédio e fui me acalmando. Não sei quanto tempo isso durou. Escrevi o relatório com alguns dados. Quando notavam incoerências, buscavam-me novamente para interrogatórios, sempre acompanhados de ameaças de tortura. Assim foi até julho.

Lembro-me que me deram muitos remédios. Eu tinha ficado com muitos problemas. O osso do tórax já estava cicatrizado, embora frágil ainda. Estava com infecção no útero e fui levada numa clínica. Mas havia remédios em demasia. Remédios que me dopavam. Insisto nisso, porque preciso saber mais sobre os efeitos disso.

Assim fui levada para OBAN (no DOI-Codi ) em São Paulo. Lá tiraram-me toda a medicação. Hoje, sei os efeitos disso. Alucinei. Para mim, torturas na OBAN não puderam ser de porradas, porque minha saúde estava frágil. A “equipe de inteligência” deve ter sugerido torturas psicológicas, com a máquina da verdade, pressões de muitas maneiras, já descritas. De uma delas, eu lembro-me agora. Havia uma equipe comandada por Mangabeira, um sujeito muito supersticioso. Ele me levou para “falar com o Diabo”, num ambiente enfumaçado. Hoje, até chego a achar graça, mas, no estado em que estava, era terrificante, porque eu não sabia como viria o golpe. Mas, eu disse que o Diabo que me aparecia não era como o que ele me descrevia e nunca mais fui interrogada por ele.

Posso me lembrar da indescritível tensão que passamos cada vez que chegavam e diziam nosso nome. Daí para frente, o que tentaram fazer foi me desmoralizar como mulher, questionar meus valores, minha inteligência e tudo fizeram para que eu não soubesse distinguir entre realidade e alucinação.

Voltei estranha para o DOPS de Porto Alegre, onde fiquei até chegar meu alvará de soltura, em 20 de julho de 1972. Os gritos dos presos comuns eram contínuos e minha cela ficava bem em cima da sala de torturas . Sentia-me à beira da loucura. Contei com a ajuda de companheiros que estavam presos na cela da frente, principalmente de Diógenes Sobrosa de Souza e de outro que vim a saber agora, que era Djalma de Oliveira. Contei também a forte, amorosa e sensível presença de minha mãe Zilda que, apesar de não saber de minha vida clandestina, apesar de ter sido vítima de terrorismos em sua casa, trouxe o apoio de meus irmãos e esteve sempre presente a meu lado. A pedido de minha mãe fiquei morando com Gilda Souza da Luz, contando com seu apoio até hoje.

Quando estava na OBAN (no DOI-Codi em São Paulo), já pude notar que algo estava acontecendo com minha memória. Logo ao chegar não consegui ligar para minha família, porque não me lembrava dos nomes e telefones. Aos poucos, fui notando um certo apagamento. Já não me lembrava de muita coisa. Quando me dei conta, eu tinha sido tomada por uma amnésia da qual só me recuperei com muita terapia e análise que faço até hoje. Contei com a ajuda fundamental de minha nova família Antônio Norival Soave, com quem me casei após sairmos da prisão. Depois contei com meus filhos, Semíramis e Paulo que têm conseguido conviver comigo, aceitando-me e ajudando-me com amor. Outro sim contei e conto com verdadeiros amigos. Eles sabem compreender-me e aceitar-me.

Quando recebi o alvará de soltura, fiquei sabendo que teria que fazer um documento dizendo que tinha sido bem tratada. Como me recusei voltei para a cela. O delegado me chamou e me pediu que eu escrevesse que tinha entrado com a fratura no tórax, como constava na radiografia. Naturalmente, não aceitei escrever isso. Lembro-me de ter escrito que recebi o atendimento dado aos presos políticos.

Sim, meu pai, continuo achando que valeu a pena. Hoje, felizmente continuo viva e, tendo feito o luto dos companheiros que foram assassinados, sigo em busca de meus sonhos, firme na luta, sabendo que estamos lutando por um causa justa. Um dia a humanidade vai viver numa sociedade em que os homens serão aceitos na sua desigualdade. Haverá paz e justiça social para todos e não haverá nunca mais torturados nem torturadores.

Textos publicados no livro “Relatório Azul”, 1997, da Comissão

Tortura – Nunca Mais!

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Tortura - Nunca Mais!

Tortura – Nunca Mais!

A criminalização da tortura em nosso país é quase tão recente quanto a conquista de nossa democracia. A tortura institucionalizou-se como crime com a Lei 9.455, de 7 de abril de 1997. Antes dela, a tortura era tratada como crime somente quando fosse praticada contra crianças. Contudo, não definia a tortura em termos específicos.

A violência da tortura “é a destruição da essência de alguém”. A caso da violência contida na tortura, é a destruição da humanidade da essência de ser alguém. A tortura apaga os traços definidores de um sujeito. A desumanização dos participantes desse processo se dá à medida que o torturador se coloca acima da condição humana e força o torturado a se colocar na situação abaixo da condição humana.

A tortura é usada como meio para obter informações, mas também para destruir e abalar o psicológico do torturado. Os casos de tortura também gerou um medo coletivo, medo dos porões, do envolvimento com a política, medo da perseguição. A tortura foi um instrumento de coerção amplamente utilizado pelo aparato militar da ditadura. As sessões eram monitoradas pela presença de médicos e enfermeiros nas seções de tortura, cujas intervenções davam o aval ou não para continuar com a violência.

Trazemos esta semana a temática: “Relatos de torturados”. Para tanto precisamos compreender o que é a tortura. Trazemos uma cena que apesar de se tratar de uma novela retrata bem o quadro.

Nesta Cena do filme “Batismo de Sangue” retrata o momento em que dois dominicanos são levados pelos militares. Na sequência, os militares os torturam para saber onde encontrar o líder da ALN, Mariguella.

Marcas do terror da Ditadura

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     Toda ditadura é marcada pela imposição dos interesses de uma minoria para a maioria da sociedade. Fecham-se ou estreitam-se os espaços de participação na vida política, que passa a ser ocupada quase que exclusivamente por aqueles que detém maior poder. Poder que é determinado, sobretudo, pela força econômica e militar. Dentre outras estratégias para o controle e para a imposição de um projeto de sociedade, destacamos a utilização da violência, numa escala inédita na violenta história brasileira. Durante todos os anos da Ditadura Civil-Militar, a violência foi utilizada para eliminar fisicamente aqueles que se colocavam na oposição ao regime, mas também tinha uma função de causar temor em toda a sociedade. Isto fazia parte da guerra psicológica prevista na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, contida nos mais importantes manuais militares da época. Assim, buscava-se provocar o desestímulo à participação na vida pública nacional. Dentro desta perspectiva, tinham especial importância os sequestros e os assassinatos fomentados por interesses políticos, a tortura (mal) dissimulada, as prisões arbitrárias para averiguações, os atentados, as falsas informações e a censura, a repressão a manifestações e greves. Enfim, todos estavam ou sentiam estar próximos das bainotas caladas e do tacão militar.

     Todas as sociedades que passaram por regimes ditatoriais sofrem décadas com as marcas deixadas pelos anos de autoritarismo. Cada um de nós deve perceber que herdamos elementos desse período e que, de alguma forma, fazem parte direta de nossas vidas. Além dessa percepção, devemos retomar a experiência de pessoas que sentiram em suas peles e em seus corações todo a absurda violência praticada pelo Estado. A seguir, indicaremos alguns materiais que nos possibilitam o contato com essas histórias.

Indicamos o documentário 15 Filhos, e, com ele, aproveitamos para divulgar o site em que se encontra, que é um acervo de vídeos sobre o período da Ditadura:
http://www.videotecas.armazemmemoria.com.br/Video.aspx?videoteca=Mg==&v=ODA=

O livro Direito à Memória e à Verdade: histórias de meninas e meninos marcados pela ditadura. A obra nos proporciona depoimentos de diversas vítimas, que eram crianças quanto tiveram que enfrentar situações absurdas:
http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_criancas_e_adolescentes/livro_criancas_e_adolescentes_sem_a_marca.pdf

Aproveitamos para indicar a leitura do livro K, de Bernardo Kucinski, que retrata muito do que fora e é enfrentado pelos parentes de pessoas sequestradas e mortas pela Ditadura. O livro não é de fácil acesso, apesar de ter sido rebublicado há pouco tempo, mas vale o esforço por sua procura. Contudo, já que não podemos disponibilizar o livro, indicamos uma entrevista com o autor, que é, além de escritor, jornalista e ex-professor da USP:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5411&secao=439

Prisões no Rio Grande do Sul

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mapa resistenciaÉ consenso que a ditadura civil-militar esteve presente em todo Rio Grande do Sul e desta forma, foram instalados locais de prisão e maus-tratos em muitas cidades gaúchas. A partir do levantamento feito pela equipe que elabora o Catálogo Seletivo Resistência em Arquivo: Memórias e Histórias da Ditadura no Brasil, foram mapeados locais de prisão em mais de cinquenta cidades no estado. As cidades de Erechim, Nonoai, Santa Bárbara do Sul, Santa Maria, Uruguaiana, por exemplo, são frequentemente mencionadas pelos ex-presos políticos em seus depoimentos.

Falando especificamente de Porto Alegre, podemos citar como locais geridos pelo Estado, a Ilha da Pólvora (ou Ilha das Pedras, Ilha das Pedras Brancas, Ilha do Presídio); o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), hoje Palácio de Polícia; o Serviço Social do Menor (SESME); o Dopinha, localizado na Rua Santo Antônio; o Regimento Bento Gonçalves; a Penitenciária Feminina Madre Peletier e o Presídio Central. Muitos locais administrados pelo exército também foram utilizados como prisões, dentre eles, o 3° Batalhão de Polícia do Exército de Porto Alegre, que aparece em alguns processos como Quartel da 6º Cia de Polícia do Exército; o Regimento Osório de Cavalaria; o Quartel da Serraria; o 2º Regimento de Cavalaria Mecanizada e o 18o Regimento de Infantaria. Todos estes locais hoje são reconhecidos pela violência aplicada aos presos políticos e isso caracteriza o quanto a repressão foi intensa na capital. Tudo o que acontecia nestas instituições era em nome do bem da população e pela manutenção da “democracia”.ilha do presídio

Através dos processos administrativos que compõe o acervo da Comissão Especial de Indenização verificamos que em alguns casos eram comuns as transferências entre instituições geridas pelo exército e outras geridas pelo Estado. Muitos ex-presos relatam que foram presos por agentes públicos sob o comando do Estado e transferidos para quartéis do exército. O levantamento, que estará representado no catálogo em forma de lista e através de um mapa, salienta que a estrutura repressiva estava fortemente estabelecida e de certa forma interligadas.

Indicamos para leitura Estado de Exceção e Vida Nua: Violência Policial em Porto Alegre entre os Anos de 1960 e 1990 – de Susel Oliveira da Rosa.

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